A participação de uma entidade sem fins lucrativos em uma sociedade empresarial

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(Por Letícia Vidotti)

Possibilidade e formas de exercício de atividade econômica como fonte de recursos

Partindo da verificação da possibilidade de participação de entidades sem fins lucrativos no quadro societário de empresas e da necessidade de proteção patrimonial dessa entidade do Terceiro Setor, nos deparamos com algumas possibilidades de extrema relevância para as entidades em questão, mas que, ainda, trazem incertezas, tendo em vista a jovialidade de algumas importantes alterações legislativas e a ausência de decisões a respeito dos temas.

A problemática citada envolve sociedades limitadas que possuem patrimônio originário de organizações religiosas e quadro societário formado por pessoas físicas que ocupam cargos de confiança na igreja. Sendo assim, há insegurança no tocante à ausência dos referidos sócios, uma vez que seus sucessores podem não entender e/ou não acatar o formato de gestão em questão.

Inicialmente cabe frisar que o presente estudo, entre outros pontos, foi instaurado pelo risco da perda da imunidade tributária das citadas entidades, o que nos leva ao breve entendimento sobre o assunto.

É sabido que a Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB prevê, em seus artigos 150, 195 e 240, que as entidades sem fins lucrativos podem usufruir da Imunidade Tributária. No caso das organizações religiosas a fruição pacificada da imunidade tributária se aplica apenas para os impostos em espécie, conforme fixado na alínea “b”, inciso VI do artigo 150 da CRFB.

Cabe destacar que, atualmente, para as entidades sem fins lucrativos, a única imunidade tributária que ocorre espontaneamente é a do Imposto de Renda – IR de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL. Para acessar o benefício no tocante aos demais impostos e contribuições, as entidades devem requerer o direito constitucional pela via judicial (imunidade tributária) e/ou administrativa (isenção).

No tocante à possibilidade de as Organizações Religiosas poderem usufruir da Imunidade Tributária das contribuições sociais, não há previsão expressa no artigo 195 da CRFB mas, considerando que a redação da Carta Magna brasileira é de 1988 e apenas em 2003, por meio da lei 10.825 a natureza jurídica de organização religiosa foi inserida no art.44 do Código Civil, algumas entidades com o viés religioso, mas que possuem atuação nas áreas de educação e/ou assistência social conseguiram a declaração de imunidade tributária das contribuições sociais pela via judicial.

Importante salientar que a possibilidade aqui apresentada não está pacificada. Contudo, o Projeto de Lei Complementar 134/2019, que no último dia 28/10/2021 foi aprovado na Câmara dos Deputados com votação expressiva (320 votos favoráveis e 5 contrários) e seguiu para o Senado, e no caput do art. 3º que versa sobre os requisitos para fruição da imunidade tributária prevista no parágrafo 7º do art. 195 da CRFB, incluiu em seu texto por meio da Emenda nº 5 a referência expressa a “cooperativas e organizações da sociedade civil”, não se limitando a concessão do referido benefício às associações e fundações de direito privado. Sendo a organização religiosa considerada como “organização da sociedade civil”, ela estaria enquadrada nesse dispositivo.

Passando para a análise da existência ou não de vedações legais na legislação aplicada ao Terceiro Setor, tendo como base o Código Civil (Lei 10.406/2002) e seus artigos 53 a 69 e a Lei 13.019/2014 e suas alterações, não identificamos óbices.

Salientamos ainda, que o Marco Regulatório do Terceiro Setor (lei 13.019/2014), não dispõe sobre qualquer vedação para que as entidades possuam atividades econômicas, sendo imposta de forma genérica a observação em quatro requisitos mínimos. São eles:

I. Entidade privada sem fins lucrativos que não distribua entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados, doadores ou terceiros eventuais resultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, isenções de qualquer natureza, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplique integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva;
II. Investir todos os seus recursos nos objetivos estatutários em território nacional;
III. Escrituração de acordo com os princípios fundamentais de contabilidade e com as Normas Brasileiras de Contabilidade;
IV. Em caso de dissolução da entidade, o respectivo patrimônio líquido seja transferido a outra pessoa jurídica de igual natureza que preencha os requisitos desta Lei e cujo objeto social seja, preferencialmente, o mesmo da entidade extinta.

Com relação às organizações religiosas, a liberdade para constituição e forma de gestão é ainda mais abrangente, conforme fixado no parágrafo 1º do artigo 44 do código civil: “são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”.

A liberdade de criação de uma organização religiosa se aplica no sentido amplo, inclusive na sua forma de gestão, uma vez que a legislação civil não dispõe sobre sua configuração no tocante às despesas e receitas. Com isso, entende-se que não há impedimentos para uma organização religiosa receber qualquer tipo de doação, incluindo quotas de uma sociedade empresarial.

Vale destacar que, mesmo em julgados e nas Soluções de Consulta da Refeita Federal do Brasil – RFB, não há vedação expressa de doação de quotas de uma sociedade para uma entidade do terceiro setor. Em que pese, o posicionamento da RFB de que uma ESFL ao participar do quadro societário de uma pessoa jurídica com fins lucrativos poderia comprometer a imunidade tributária do IR e CSLL, conforme redação da Solução de Consulta COSIT Nº 121 de 13 de setembro de 2021. A conferir:

A aquisição de participação societária por parte das organizações sociais qualificadas a gozar de imunidade e isenção tributárias, afasta o direito ao gozo das benesses fiscais por contrariedade ao requisito de que todas as rendas, recursos e eventual superávit sejam aplicados integralmente na manutenção dos seus objetivos, que devem ser a prestação de serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação, sem fins lucrativos, e não a participação em sociedade empresária, que possui inerente fim lucrativo.

Sendo assim, permanecemos com a máxima de que é possível a participação de uma entidade sem fins lucrativos no quadro societário de uma pessoa jurídica com fins lucrativos, tendo em vista que essa participação seria uma fonte de recursos (atividade meio) em prol de sua finalidade principal, não econômica. Assim, se tal participação objetiva (de forma clara e expressa em estatuto) somente a preservação do patrimônio e sustentação da entidade, não seria justificável a perda da imunidade.

Atividade fim e atividade meio

Imperioso salientar que, mesmo uma entidade possuindo como atividade meio a participação em uma sociedade com fins lucrativos, seu objetivo fim previsto no estatuto, deverá permanecer inalterado e, consequentemente, todas as rendas, recursos e eventual superávit serão aplicados integralmente na manutenção dos respectivos objetivos sociais; assim, não há que se falar em perda de imunidade tributária para o CNPJ sem fins lucrativos, uma vez que a tributação irá ocorrer normalmente dentro da atividade com finalidade econômica.

Ainda com relação à Solução de Consulta COSIT Nº 121 de 2021, cabe fazer uma breve exposição e diferenciação dos conceitos de atividade fim e meio. Possuir atividade econômica não significa que sua finalidade foi alterada, uma vez que sua natureza jurídica de entidade sem fins lucrativos, bem como seus objetivos sociais estatutários são totalmente preservados.

Já o “sem fins lucrativos” não significa que uma organização social não possa ter superávit; diz respeito, no entanto, ao destino dado a esse resultado. Assim, a entidade dessa natureza que apresente, em determinado exercício, o superávit, deve destinar o referido resultado, integralmente, à manutenção do desenvolvimento dos seus objetivos sociais (Lei n° 9.532/97 com redação dada pela Lei n° 9.718/98, art. 12, § 3º e Lei Complementar no 104, de 2001). É muito importante destacar, porém, que a finalidade não econômica não é um elemento restritivo para a venda de produtos ou fornecimento de serviços pelas entidades. Desde que o valor auferido seja empenhado na consecução da finalidade precípua da entidade, não há qualquer impedimento para essas práticas.

Assim, se uma entidade sem fins lucrativos, promover a comercialização, produzir produtos, prestar serviços ou até mesmo participar de uma sociedade, e seus objetivos sociais permanecerem inalterados e voltados para as atividades não econômicas, a entidade continuará cumprindo os requisitos do artigo 14 do CTN, que, por sua vez, se apresenta como única lei complementar que temos até o momento para regular a fruição da Imunidade Tributária.

 

[Continua]

Sobre a autora (Letícia Vidotti):

Advogada, atuando nos últimos 5 anos como Gerente do Jurídico/ Compliance de um grupo de empresas voltado para a Consultoria, Educação e Tecnologia aplicada em gestão de pessoas, processos, contratos e segurança. É Trainer na área jurídica e uma grande estudiosa de assuntos relacionados à gestão de pessoas e ao mundo empresarial e terceiro setor.

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Fotos: Pixabay

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