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Economia e desvitalização

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(Por Sebastião V. Castro, Dr)

A Economia

Em artigo anterior (Vertentes, no 2, 2019) abordando a cautela que se deve ter com o uso das métricas, tratei do processo pelo qual a Economia, no mundo ocidental e, quiçá, hoje em dia, em todo o mundo, perpassa todo o tecido social e, sutilmente, se imiscui em nossos pensamentos, aí se colocando como paradigma.

Por esse mecanismo é que os números foram, pouco a pouco, se posicionando à frente dos afetos, das emoções, das relações humanas, do civismo, dos comportamentos altruístas, dos valores, da ética. Sem nos apercebermos, o “pensamento monetizado” foi tomando conta do pensamento geral, estabelecendo-se, profunda e arraigadamente, no nosso “tronco encefálico”, em nossas mentes.

Por esse processo, do qual as métricas são apenas a “ponta do iceberg”, o pensamento vai se transmutando em pensamento de base financeira e, de forma quase inconsciente, a tudo atribuindo um valor monetário, um custo, um preço, um lucro, uma “perda”, um ganho. Como se uma máquina calculadora invisível se apoderasse de cada um de nós, cada situação é rapidamente “calculada” em termos do seu retorno financeiro.

Assim, vai ocorrendo a “financeirização” das relações de “amizade”, dos cuidados – com o aluno, com o idoso, com o enfermo, com os pais, com os filhos -, dos casamentos, e de tantos outros compromissos humanos. Essa financeirização esgarça os relacionamentos, os desidrata e os desvitaliza.

Como ocorre a desvitalização da Vida, pela economia

Ao longo deste ano de 2020 um dos grandes embates, mundo afora, foi o do lockdown das cidades (e de suas atividades comerciais e industriais), devido à pandemia do coronavírus, versus os impactos econômicos sobre as populações.

Em que pesem as incertezas quanto à letalidade do vírus e suas consequências sobre pessoas diferentes, o pensamento de fundo econômico se sobrepôs ao cuidado com a vida e sua preservação, em diversos países. O que se ouviu, de forma muito presente, foi a relativização da vida. Houve mesmo quem dissesse: “Muitos vão morrer mas, e daí?”. Esse tipo de discurso, neste caso ligado à pandemia, não é isolado, no entanto. Ele faz parte de algo maior, de um mecanismo muito mais profundo, qual seja, o do cálculo econômico do valor da vida.

Nas tragédias de Mariana e Brumadinho, para citar as mais recentes, em que centenas de pessoas foram soterradas e mortas pela lama de barragens de rejeito, o que se ouviu, por sobre os cadáveres, foi a pergunta: quanto vale, em dinheiro, uma vida humana? E o pior, essa pergunta é ouvida por todos, praticamente em silêncio, quase sem rejeição.

As “indenizações” são discutidas, negociadas, acertadas. Os eventos de morte são, aos poucos, minimizados, pagos, suavizados (por monumentos, às vezes, obras de arte!). As responsabilidades são diluídas entre gestores, acionistas, fundos… As responsabilidades vão se tornando anônimas.  Ao fim e ao cabo, apenas as famílias, cujos entes queridos se foram, ficam com a dor da perda, ressoando por toda a vida de quem fica!

Mas como tem ocorrido esse processo de desvitalização?

A moeda, o dinheiro, foi criado para mediar transações comerciais, relações de troca. No início, se falava em troca de moedas por mercadorias, produtos, artigos. Bens inanimados. Mas depois, animais também começaram a ser “trocados” por dinheiro: porcos, galinhas, javalis, coelhos, cavalos, burros de carga, bois…

O homem, de criatura, arvorou-se em “senhor da criação” e passou a dispor, sem cerimônia, dessas “vidas inferiores”, das vidas dos animais e também dos vegetais, desde os alimentos até as grandes árvores, derrubadas e transformadas em madeira; tudo foi sendo lentamente transformado em mercadoria.

Como as sociedades também se estruturaram em estratos, com homens “nobres” no vértice da pirâmide e homens “comuns” em sua base, esses últimos também passaram a ser vistos como mercadorias (de forma mais explícita, em todos os sistemas escravocratas do mundo). Como mercadoria, o valor dinheiro faz a equivalência!

Se antes haviam “travas” morais e éticas que “protegiam” os homens (mas não os animais ou as árvores, vidas “inferiores”), paulatinamente tais travas foram sendo removidas, esmaecidas.

Desde o soldado raso, já na antiguidade mandado à guerra para morrer, como “bucha de canhão”, na ilusão de estar defendendo o “seu país” (e não os interesses da classe dominante desse país), até hoje em dia, as “vidas inferiores” dos civis mais pobres, a lógica tem sido a mesma: um valor monetário paga a vida!

Nesse sentido, há uma verdadeira “predação econômica”! As classes mais no topo da pirâmide literalmente “devoram” quem está na base, notadamente as classes populares. Ao longo dessa predação, vidas vão sendo despedaçadas, seja literalmente (devido às más condições de saúde, altas taxas de violência, falta de saneamento, etc), seja simbolicamente, na não-oferta de oportunidades de ascensão, de educação, para essa classe empobrecida, num processo perverso de genocídio social.

Os mais pobres, os aleijados, os mendigos, num processo inexorável de aporofobia[1], vão sendo expulsos do sistema via mortes “planejadas” por abandono, indiferença, doenças evitáveis, fome, etc.

Esse processo se auto-alimenta, na medida em que as condições estruturais não permitem que os mais pobres saiam do círculo vicioso da pobreza. Tais condições são, ao longo dos séculos, assim mantidas pelas classes privilegiadas, que dependem da força de trabalho da leva de empobrecidos para desempenharem as funções operacionais que mantêm em funcionamento as ricas estruturas de suporte aos privilegiados. Não deixa de ser, num olhar histórico, a manutenção da situação de escravidão.


Foto: Mãos com cofre de porquinho.

Todo o processo de predação é, evidentemente, naturalizado, como se fosse parte intrínseca da sociedade humana, não se vendo, nele, nada de excepcional, nada de amoral, nada de pecaminoso. “As coisas são assim e assim devem continuar.” Há uma “coisificação”, uma “objetificação” do trabalhador da base da pirâmide que é feita parecer, a todos, natural. Em relação às mortes, criou-se uma indiferença! 

No capitalismo exacerbado e imoral elevado, ao longo do último século, ao posto de pensamento dominante, essa transição do conceito de vida humana à categoria de coisa, de mercadoria vem sendo sutilmente tecida e reforçada.

Para potencializar esse conceito, um ataque silencioso e eficiente aos valores humanos e à ética tem sido igualmente realizado por diversos instrumentos e aparelhos ideológicos, culturais e sociais: a mídia, a indústria do cinema e da tevê, a internet, a má política, a economia e o mercado, etc.

Assim é que se tem uma construção “a muitas mãos”, com boa parte dos veículos de comunicação e dos produtores de conteúdo sendo instrumentalizados e capturados pela economia de mercado para erodir o conceito de Vida como valor absoluto.

Como o último bastião, num sistema perverso que visa à desigualdade entre os homens em geral em benefício de uns poucos, a Vida precisou ser relativizada e transformada em valor dinheiro porque assim pode ser comprada, negociada, trocada, paga.

Essa relativização é que está na base do embate acima citado entre lockdown ou vidas, nas grandes tragédias ambientais, nas externalidades ambientais[2] (para assim não serem percebidas) constantes e sistemáticas e numa miríade de outros casos.

[Continua]


[1] Aporofobia, el rechazo al pobre (Aporofobia, a rejeição ao pobre), Ed. Paidós, 2017;  de Adela Cortina, filósofa espanhola que desenvolveu o conceito.

[2]  Castro, Sebastião.  “Por uma nova concepção de gestão ambiental”,  in Olhares Plurais sobre o Meio Ambiente.     São Paulo, Ícone, 2009.


Sobre o autor (Sebastião Castro, Dr.):

Doutor, área de Políticas Públicas; Especialista em Gestão de Pessoas nas Organizações; Governance, Risk and Compliance (Lisboa); Mestre em Meio Ambiente (UFMG); Especialista em Recursos Hídricos (Aston University, Inglaterra); Especialista em Gestão e Manejo Ambiental (UFLA); Perito Judicial Ambiental; Professor Ex-Diretor de Escolas; Coordenador de Projetos Internacionais de Educação; Viagens técnicas (meio ambiente e educação) a mais de 30 países; Consultor, há mais de 20 anos, nas áreas de Gestão e Educação, para mais de uma centena de escolas e IES católicas. Autor de “Gestão de Pessoas em Instituições Confessionais” e “Perda de Alunos nas Escolas Católicas”.


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Fotos: Pixabay

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