(Por Márcio Moreira, Me)
Fé e obras
A mensagem apostólica e vinculante de fé e obras, que liga o corpo místico de Cristo, viva nos entes eclesiásticos, ao exercício das suas diversas ações pias e filantrópicas é uma das razões que, canonicamente, justificam a propriedade de bens temporais.
São Paulo nos ensina que somos justificados pela fé e esta, se verdadeira, resulta em atos de salvação (Rm 3-28). Estas ações, materializadas nas obras, testemunham com intensidade a fé e são assim descritas, nos ensinamentos de São Tiago: “Podeis ver, pois, que alguém é justificado com base naquilo que faz e não simplesmente pela fé” (Tg 2-24).
Ademais, quanto à importância das obras, duas referências polonesas de santidade, assim preconizam, em suas mensagens: Santa Faustina, “…mesmo a fé mais forte de nada serve sem as obras”, e, assim, enfatizou o seu compatriota, São João Paulo II, na sua encíclica papal: “Cristo proclama com obras, mais ainda do que com palavras, o apelo à misericórdia, que é uma das componentes essenciais do ‘ethos’ do Evangelho”.
Em vista disso, considerando a importância das obras na vida da igreja, é marcante e plenamente compreensível o convite feito por diversas Casas Gerais e pelos demais entes, quanto à urgência de revisão das obras confessionais, para que estas continuem exalando o carisma das entidades eclesiásticas e sendo fiéis à sua missão evangélica. Esta orientação quanto ao repensar as obras, com harmonia quase uníssona na igreja, faz coro quanto à inevitável e necessária adequação das (novas) estruturas. É neste sentido que nos lembrou o Papa Francisco:
“Ser fiel ao carisma requer, muitas vezes, um gesto de coragem: não se trata de vender tudo, nem de alienar todas as obras, mas de fazer um discernimento sério (…) o discernimento poderá sugerir que se mantenha viva uma obra que produz perdas – prestando muita atenção a fim de que estas não sejam geradas pela incapacidade nem pela inabilidade”.
Os pressupostos de revisão e reorganização institucional destas entidades são que os seus membros consigam viver de acordo com as atuais necessidades da vida religiosa consagrada ou, mesmo, o estado clerical. Eles visam, ainda, garantir àqueles que, por vocação, doaram, sua vida pelas obras, tenham, na velhice, os cuidados de saúde, físicos e mentais, necessários, bem como a manutenção dos espaços de missão e a abertura de novos, especialmente, para os mais jovens.
Tal leitura situacional, realizada por diversos Governos Gerais, com os quais temos (no Axis) intensificado nossa atuação de suporte às decisões é, seguramente, inspirada por um coerente testemunho do Pontificado Franciscano de centrar os esforços na essência evangélica da Igreja.
Este testemunho e a defesa de coerência global, amplamente defendidos pelo Papa Francisco, em relação à igreja e suas obras, são sensivelmente percebidos, também, nas suas encíclicas. A Laudato Si, por exemplo, enfatiza os cuidados que cabem a todos nós, com a Casa Comum, e refuta o consumismo e o desenvolvimento irresponsável, sendo um apelo à união contra a degradação ambiental e os desafios climáticos. Já a Fratelli Tutti, que concentra sua essência na forma simples de vida de São Francisco de Assis, relembra, com esmero, a necessidade de centrarmos na fraternidade e na irmandade social o caminho para construirmos um mundo melhor, pacífico e com mais justiça.
Em suma, a revisão das obras tem se apresentado como momento de busca pela essência da identidade que, inspirada por sua própria linha carismática, se oferece como uma oportunidade de reestudo dos ideais dos fundadores, com vistas a responder às exigências espirituais e temporais do mundo contemporâneo.
Entes eclesiásticos e obras, corpo apostólico
A relação dos entes eclesiásticos (Congregações, Institutos de Vida Consagrada, Sociedades de Vida Apostólica, Dioceses, Arquidioceses, dentre outras) com as obras que prestam serviços, por exemplo, sociais na área de educação e saúde, vez por outra, são fragmentadas e isoladas, como se possível fosse separar, sem risco, o corpo das partes que o compõem.
A Igreja Católica, através do Dicastério da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica – CIVCSVA, recomenda considerar a possibilidade das obras, com destaque para aquelas de relevante dimensão, serem segregadas da personalidade jurídica civil do ente eclesiástico.
Neste caso, não se recomenda a existência de entidades mistas, que cuidam da vida religiosa e também do exercício de atividades sociais. No entanto, mesmo ciente da importância de contar com os leigos e com estruturas distintas, o Dicastério destaca a importância de “introduzir sistemas de monitoração adequados, construir novas estruturas ágeis e fáceis de gerenciar, menos onerosas no tempo e, em momentos de dificuldades vocacionais”.
Há uma notória preocupação quanto ao comprometimento das ações religiosas, por conta das indesejadas “evoluções econômicas negativas” (prejuízos) e do próprio esforço e competência necessários para a execução de atividades laborais de caráter gerencial.
A orientação é que sejam privilegiadas estruturas que consistam em manter a propriedade dos bens, em nome da Igreja, e o controle das obras. Tal disposto encontra abrigo na ciência contábil que tem no princípio da entidade, a separação entre personalidades jurídicas. Todavia o que deve ficar límpido é que, mesmo com tal distinção dos entes civis, as obras devem estar subordinadas à pessoa jurídica canônica e não o contrário.
Constata-se, em algumas entidades, disparate quanto a este quesito. Religiosas e religiosos, mesmo alguns que compõem o governo provincial legalmente constituídos, possuem poder de ação e influência menor que alguns “profissionais” da instituição. Em alguns casos, existe um considerável patrimônio construído, em sua maioria, com o trabalho e a credibilidade dos membros da instituição, que deveria estar sob a tutela da Igreja, por ser um bem originalmente eclesiástico.
No entanto parte desse patrimônio está amarrada em estruturas “quase laicas ou de espírito estatal” e tutelada por “terceiros” que, vez por outra, não têm clareza que esse bem compõe o patrimônio eclesiástico e está fundamentado num carisma e missão evangélicos.
Quanto ao assunto, obras representadas por entes civis coligados, ou vinculados, assim dispõe a orientação do Dicastério da CIVCSVA:
“Embora se trate de sujeitos distintos, a coligação de tais entes aos Institutos justifica uma especial atenção na sua constituição e na sua gestão. A atividade de tais entes, de fato, pode colocar em risco a boa fama do Instituto e dar lugar, se as leis civis aplicáveis o prevejam, a uma responsabilidade do Instituto por débitos do ente coligado”.
Defende-se, a partir de um alicerce técnico de governança e acompanhamento da gestão, legalmente admitido pela legislação, que sejam estabelecidas alçadas com as devidas reservas de atribuições àqueles que possuem autoridade para tal, dentro da devida hierarquia canônica.
Uma modalidade que recomendamos, devidamente validada pela CIVCSVA, seria a composição dentro da estrutura orgânica dos estatutos civis das coligadas (ou vinculadas) de um “Conselho Canônico”. Este órgão teria a atribuição legal (canônica e civil), por exemplo, de nomear os dirigentes, autorizar empréstimo, alienar bens ou realizar qualquer transação em que a situação do ente tende a ficar pior, nos limites autorizados pelo Direito Próprio e pela Santa Sé, sendo taxativa a orientação da Igreja de que, em nenhum caso, os ente civis podem utilizar recursos para evitar os controles canônicos.
Cabe, aqui, não deixar dúvida. A maioria dos bens, mesmo que por circunstâncias históricas, não esteja, ainda, dentro da estrutura da Igreja, são eclesiásticos e devem observar, na sua gestão, as prerrogativas específicas, por exemplo, quanto à autorização da Santa Sé para a transferência para entes civis, nos casos em que se supera a soma máxima estabelecida para aquela região. Ressalva-se, neste ponto, que o patrimônio destinado a fim específico, seja por instituição pública ou privada, deve preservar a vontade daquele que se dispuser a cedê-lo. Isso vale tanto para fins civis quanto canônicos.
[Continua]
Sobre o autor (Márcio Moreira, Me):
Mestre em Administração e Finanças, Auditor, Pós-Graduado em Auditoria Externa, Graduado em Ciências Contábeis, Perito Contábil e Especialista em Gestão Tributária. Professor de Graduação e Especialização: Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) e Faculdade Vicentina de Curitiba (FAVI).
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