(Por Orietta Borgia, Dra)
Renascenças: "E agora José?"
Três anos atrás, tive a honra de ser convidada para escrever uma série de artigos sobre cultura para a revista Vertentes. Eu pretendia estrear falando dos principais eventos artísticos do momento, uma espécie de tour entre as mais importantes exposições daquele ano na Europa. Mas no meio do meu caminho, precisei acertar as contas com um dos fenômenos mais inesperados e abaladores do segundo milênio: uma pandemia. Algo absolutamente surpreendente, impensável, surreal até. Aqueles sentimentos de medo, de impotência e de inelutabilidade que atormentaram a humanidade até à Renascença, desconhecidos pelo homem do segundo milênio, levaram água abaixo, como uma implacável enxurrada, todas as nossas certezas. E agora José?
Um sinal ou um sintoma?
No ano 400 d.C. Roma, centro e capital do Império Romano do Ocidente, era ainda uma metrópole com cerca de 700.00 habitantes, 28 bibliotecas, 19 aquedutos, 2 circos, 37 portas, 423 subúrbios, 46.602 palácios, 1790 mansões, 290 celeiros, 856 estabelecimentos termais, 254 padarias, 46 bordeis e 144 latrinas públicas. “A cidade era sob todos os aspectos um lugar extraordinário” , escreve Harper no seu livro “The fate of Rome”. E, no entanto, Roma estava sendo corroída pela sua própria grandeza. A fragmentação e a fragilidade política, a distância entre o estado e a sociedade, o luxo excessivo e a extrema pobreza, o peso tributário, a nova religião distraíram Roma, enfraqueceram o exército e abriram o caminho às Invasões dos Bárbaros. No ano 455, com o Grande Saque dos Vândalos, Roma sofre pela primeira vez, após oito séculos, uma ocupação estrangeira. Um evento epocal que os contemporâneos viveram como um verdadeiro trauma e um claro sinal do fim de uma era de glória. Ou sintoma de uma sociedade doente?
Causa ou consequência?
As invasões bárbaras são apontadas como a causa mais visível deste longo processo de declínio que levará, vinte anos mais tarde, ao fim do Estado Romano , com a queda de um dos Impérios mais longos e povoados da antiguidade. Mas seria causa ou consequência? O estudioso alemão Alexander Demandt elabora uma lista com 200 causas possíveis. Outro estudioso, Kyle Harper, inclui nas causas mudança climática e epidemias. Muitas outras causas alimentam, ainda hoje, o debate entre os historiadores, mas algumas nos envolvem muito de perto:
– a crise econômico-produtiva dos campos, juntamente com a queda dos movimentos comerciais e a inflação galopante;
– a perda de coesão social devida ao forte desequilíbrio na distribuição da riqueza: luxo excessivo para pouquíssimos e pobreza extrema para a grande massa dos camponeses e do proletariado urbano;
– a falta de consenso para com o governo central, causada também pela degeneração burocrática, com a corrupção sistemática e o excessivo peso tributário que grassava sobre as classes menos favorecidas;
– a diminuição demográfica devida não apenas às guerras e às carestias, mas também às epidemias que se difundiam rapidamente e causavam numerosas vítimas.
A Queda
No ano 476, do imenso Império Romano do Ocidente sobrava apenas a Península Itálica, e seu valoroso exército contava, em suas fileiras, mais bárbaros do que romanos. Os historiadores estabelecem a data formal da Queda em 4 de setembro de 476, quando Odoacre, um bárbaro general do exército romano depõe, com um ato de rebelião, o último Imperador romano, Rómulo Augustolo, e assume o poder da Península Itálica. Odoacre transfere a capital de Roma para Ravenna e envia as insígnias imperiais para Bizâncio reconhecendo, com este gesto, a autoridade e o papel do Imperador Romano do Oriente. É o fim definitivo do Império Romano do Ocidente.
Roma, caput mundi, torna-se um mero Ducado, uma aldeia despovoada onde os rebanhos pastam entre as gloriosas ruínas. Para a humanidade é o início da Idade Média , chamada também “Idade das Trevas” pelo número inacreditável de mortes causadas sobretudo pelos incêndios e pela Peste.
O que acontece no Ocidente a partir deste momento?
Após a fase inicial dos ataques e dos saques, os reis bárbaros deixaram inalteradas as leis, as instituições e as estruturas romanas. O Senado Romano , embora formalmente no cargo, já era uma pálida imitação daquele das épocas passadas, e sua autoridade, quase nula.
O Ducado romano, sem a presença militar garantida por Constantinopla , ficou exposto e indefeso frente à ameaça dos Longobardos. Numa situação caracterizada pela incerteza e a instabilidade, a figura do Pontífice torna-se cada vez mais uma referência estável, e o papel da Igreja cada vez mais importante. Para o Imperador, o Papa era um simples funcionário, cuja eleição só tinha validade com a aprovação de Constantinopla, mas para o povo ele era a máxima autoridade civil da Urbe e do Ducado.
No ano 726 os Longobardos declaram guerra ao Exarco da Península Itálica, ocupam Bolonha e seguem seu caminho de conquistas até às portas de Roma. No ano 728 o Papa Gregório II, sem outras armas senão as do poder espiritual e diplomático, enfrenta Liutprando, rei dos Longobardos. O encontro passará à história como a doação de Sutri. Liutprando depõe a espada aos pés da cruz e doa alguns territórios do Lazio aos Apóstolos Pedro e Paulo, ou seja, à Igreja Romana, permitindo-lhe, assim, expandir seu território para além dos confins do Ducado.
É a fase embrionária do Estado Pontifício que, depois de 280 anos desde o fim do Estado Romano, e uma gestação de 28 anos, levará ao reconhecimento de Roma como sede do poder ecumênico.
Na noite de Natal do ano 800 Carlos Magno, rei dos Francos e dos Longobardos, será coroado Imperador do Sacro Império Romano pelo Papa Leão III, na antiga basílica de São Pedro.
Um sopro nas cinzas de Roma para trazê-la à luz e colocá-la novamente no centro do mundo.
[Continua]
Sobre a autora (Orietta Borgia, Dra):
Romana de nascimento, paulista de adoção. Formada em filosofia na PUCSP, nos anos da ditadura. Quando a faculdade de filosofia foi fechada e o Teatro Tuca também, arrumei as malas e vim para Roma, onde trabalhei em rádio, teatro e traduções. Os laços com minha amada São Paulo, porém, nunca foram cortados, e por vários anos fui correspondente da Itália para a Folha, o Estado e rádio Bandeirantes. Hoje sou tradutora e dirijo uma pequena companhia de teatro em Roma.
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Fotos: Pixabay e Unsplash