No âmbito canônico, denúncias de Abusos Sexuais e outros

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(Por Adilson Souza, MSc)

O contexto

Um enorme e degradante problema, dentre outros vários, que assola a população mundial e, neste caso, de forma direta e devastadora, as crianças e jovens (além dos adultos vulneráveis), é a questão dos abusos sexuais. Dentro do contexto mundial, a situação é dramática e, se olharmos para dentro do nosso Brasil, o que vemos não tem nada de infantil, de inocente e de alegria, características que deveriam se mostrar sempre presentes no mundo infanto juvenil.

Quando analisados os dados estatísticos recentes e disponíveis, temos a violência sexual sendo escancarada de forma cinzenta e com semblante totalmente avermelhado de puro sangue, através dos aumentos percentuais sendo apresentados de forma dolorosa – e horrorosa -, com crimes de estupros aumentados em 3,7% em relação ao ano anterior (2021), uma taxa média de estupros e estupros de vulneráveis de 51,8 para cada 100 mil habitantes do sexo feminino (2021).

Ainda conforme as estatísticas, do total de estupros em 2021 (66.020), a violência sexual contra vulneráveis foi acentuada, com vítimas do sexo feminino de até 14 anos constituindo a maioria dos casos (acima de 45 mil). Especialistas apontam ainda que esse tipo de crime tem alto nível de subnotificação, diante do constrangimento das vítimas em expor a agressão, em grande parte das vezes cometida por alguém próximo, ou receio de falta de acolhimento pelas autoridades.

Mas as coisas ainda podem piorar – como se a situação por si só já não fosse a última das dores -, considerando que 86% das vítimas alegam conhecer o agressor, como pessoa próxima, parente ou alguém íntimo em seu dia a dia. É uma confiança que se projeta às avessas. 

Foram, entre 2017 e 2021, cerca de 200 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, excetuando outros milhares que não se pronunciam, pela cultura do medo, identidade machista presente no seio da sociedade, vergonha, pavor, ausência de respaldo e escuta, e ainda, a potencial onda de humilhações.

Várias consequências advêm quando da ocorrência dos estupros, tais como relatam os sobreviventes. Pode-se constatar efeitos danosos, irreparáveis, mais claros/visíveis e de graves sequelas físicas, morais, psicológicas e espirituais. 

A gravidez talvez seja aquela que maior projeta o problema aos olhos dos outros, mas efeitos também invisíveis ou de menor visibilidade também são detectados, tais como, o desequilíbrio psicológico, a instabilidade emocional, o estresse pós traumático, o medo de estar perto de pessoas ‘queridas’, a vergonha, a tendência às drogas, abuso do álcool, ao suicídio, perda da fé e outras não menos perigosas e de enorme impacto naquelas vidas que, muito provavelmente, não serão as mesmas e cujos roteiros foram completamente alterados, senão destroçados, por inteiro.

A Igreja

Todo o exposto acima, de maneira cruel, triste e inexplicável ocorre em diversos ambientes, mas também acontece naquele que talvez fosse o último dos locais seguros e, até então, confiáveis para as famílias e seus integrantes, que se tornam estatísticas dentro do espantoso quadro que, a cada dia, amplia seu número de dolorosas e sofridas vítimas. Esse ambiente é a Igreja. Ao longo da história foram vários relatos de situações ocorridas entre a sacristia e os quartos, entre os confessionários e as copas, entre a confiança e a dúvida, entre o guia e o que desvia.

Assim, de uma maneira mais efetiva e, de fato, como ecclesia materna e paterna que se propõe, o Papa Francisco tem dedicado parte de seu pontificado às questões que tanto assolam famílias, pessoas (abusados e abusadores) e a instituição em si.

“As famílias devem saber que a Igreja não poupa esforços para tutelar os seus filhos e têm o direito de se dirigir a ela com plena confiança, porque é uma casa segura. Por conseguinte, não poderá ser concedida prioridade a outro tipo de considerações, seja qual for a sua natureza, como por exemplo o desejo de evitar o escândalo, pois não há lugar algum no ministério para aqueles que abusam de menores.” 

É óbvio que o assunto sofre abordagem há tempos no meio eclesial e o próprio direito universal, promulgado em 1917, por Bento XV, reconhecia a presença de crimes canônicos, esses na época, reservados à Sagrada Congregação do Santo Ofício. Na sequência, em 1922, o Santo Ofício promulgou a instrução Crimen Sollicitationis, contendo orientações detalhadas às dioceses sobre a forma de tratar o delito canônico de solicitação. Este delito, segundo Vainfas, refere-se à tentativa de sedução erótica por parte de um padre confessor, quer de homens, quer de mulheres, no ato da confissão

Conforme a própria instrução, a acusação de solicitação era considerada como uma das acusações mais graves que se podia mover contra um sacerdote católico. Portanto, o procedimento teve o cuidado de garantir que o sacerdote, que podia ser vítima de uma acusação falsa ou caluniosa, fosse protegido da infâmia, enquanto não se provasse a sua culpabilidade, protegendo-o e aos outros envolvidos de uma indevida publicidade, até a decisão definitiva do tribunal eclesiástico.

A instrução foi reimpressa quarenta anos depois, ou seja, em 1962, conforme autorização do Papa João XXIII, com um acréscimo sobre os procedimentos administrativos nos casos que envolvessem clérigos religiosos. Essas cópias deveriam ser entregues aos Bispos presentes no Concílio Vaticano II; no entanto, a maior parte das cópias da instrução nunca chegaram às mãos dos Bispos conciliares.

Em 1983, através do novo Código de Direito Canônico, promulgado pelo Papa João Paulo II, foi renovada a disciplina relativa ao Cânone 1395, §2°, 

“O clérigo que tenha cometido outros delitos contra o sexto preceito do Decálogo, se o delito foi feito com violência, ou ameaças, ou publicamente, ou com um menor com menos de 16 anos, seja punido com penas justas, não excluída a demissão do estado clerical, se a situação o exigir”. 

Em 2001, quase 40 anos após a instrução do Papa João XXIII, foi promulgado um novo motu proprio com o titulo Sacramentorum sanctitatis tutela. O Cardeal Ratzinger, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), enviou uma carta aos Bispos acerca da nova lei e dos novos procedimentos que substituíam, a partir desta, a instrução anterior Crimem Sollicitationis.

Visando melhorar o texto promulgado em 2001, a CDF considerou que era necessário realizar algumas alterações às normas, sem que essas modificassem o texto em sua essência, mas somente em algumas partes. Em 2010, após minuciosa análise, os membros da CDF submeteram ao papa Bento XVI o texto das Normas sobre os delitos mais graves reservados à Congregação para a Doutrina da Fé”, os “delicta graviora“, que ferem a Igreja de forma particular.

Recentemente, através do motu próprio Vos Estis Lux Mundi (2019), o Papa Francisco procurou mostrar, de forma clara, a preocupação da Igreja com os crimes de abuso sexual que, segundo Francisco, 

“ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis. Para que tais fenômenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja, de modo que a santidade pessoal e o empenho moral possam concorrer para fomentar a plena credibilidade do anúncio evangélico e a eficácia da missão da Igreja. Isto só se torna possível com a graça do Espírito Santo derramado nos corações, porque sempre nos devemos lembrar das palavras de Jesus: “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Embora já muito se tenha feito, devemos continuar a aprender das lições amargas do passado a fim de olhar com esperança para o futuro.” 

E, além do detalhamento acerca daqueles atos considerados crimes, bem como o tratamento dos mesmos, o Papa exigiu (art. 2°) que as Dioceses ou Eparquias, estabelecessem, dentro de um ano a partir da entrada em vigor dessas normas, um ou mais sistemas estáveis e facilmente acessíveis ao púbico para apresentar potenciais denúncias que versassem sobre crimes de abuso sexual na Igreja.

O que se constata, no entanto, é que nem todas as dioceses atenderam ao apelo, seja quanto à implantação do sistema e/ou quanto à publicidade e acessibilidade ao sistema quando existente. 

 

 

 [Continua]

Sobre o autor (Adilson Souza, MSc):

Matemático, Mestre em Engenharia Metalúrgica e Especialista em Gestão Estratégica. Superintendente do Axis Instituto e Consultor Organizacional Sênior. Professor de Graduação e Especialização: UIT/Itaúna, Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) e Faculdade Vicentina de Curitiba (FAVI). Cursando Teologia e aluno da Escola Diaconal da Diocese de Divinópolis/MG.

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Fotos: Pixabay 

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