(Por Ir. Fátima Simone Cremer)
Vocação
Inicio este artigo em forma de diálogo, pois creio que o tema “vocação” apenas pode ser abordado com a atitude humilde da busca, pois devemos considerar fatores tangíveis, com a consciência de que estes são fundamentados em experiências transcendentes.
A primeira preocupação é não nivelar a vocação como algo sujeito às condições sociais; em palavras mais simples, acredito que Deus continua chamando, mas sua voz não tem sido “ouvida”, portanto devemos ajudar a nova geração a sensibilizar-se com as necessidades do tempo presente a fim de compreender a importância de fazer o bem aos outros, a partir de uma experiência transcendente.
Deus revela-se na história através de tantas pessoas que colocaram sua vida a serviço da vida; cada vocação nasce da experiência de encontro com Deus, como resposta às necessidades da história; assim, a vida consagrada é resposta de Deus, portanto manifestação da ação Divina. Para iluminar tal afirmação trago presente o livro da sabedoria:
“A sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra (…). Sendo uma só, tudo pode, sem nada mudar, tudo renova e, entrando nas almas boas de cada geração, prepara os amigos de Deus, os profetas.” (Cfr. Sabedoria 7, 24.27)
Este texto sempre me renova a esperança de que Deus continua chamando, preparando os “novos amigos de Deus” . A certeza da ação de Deus que chama, que conta com a colaboração humana para o seu projeto, provoca questionamentos: se Deus continua chamando, por que o número dos candidatos diminuiu? Se há tanta necessidade, porque a vida religiosa parece perder o sentido para a maioria das pessoas?
Algumas prováveis respostas
Seguramente não há uma única resposta e, muito menos, apenas uma proposta a seguir, porém expresso com convicção que devemos ter um olhar humilde o suficiente para uma autocrítica construtiva, a fim de que possamos entrar em um processo de transformação; na biologia a evolução das espécies garante sua continuidade.
A vida religiosa, em modo geral, tem uma característica conservadora; com a motivação de manter a fidelidade ao carisma, tal atitude, por anos, “garantiu a preservação” porque também a sociedade era constituída de maneira mais “conservadora”; em um período medieval, a própria Igreja tinha o “controle” sobre a estrutura social, prova disso é a organização atual das paróquias e dioceses que ainda são baseadas em uma organização proveniente do sistema feudal. Não obstante os desafios e limites de cada modelo histórico, a vida religiosa sempre teve uma expressão significativa.
Se olharmos a história da Igreja, a vida religiosa sempre se destacou pela profecia, isto é, sempre foi sensível às mudanças sociais e procurou responder segundo o próprio carisma; creio que o texto bíblico da ressurreição possa ilustrar a vocação da vida consagrada na Igreja:
“Após a experiência do calvário a comunidade dos apóstolos estava amedrontada e, sem direção, experimentavam incertezas e medos. As mulheres discípulas vão à sepultura ungir o corpo de Jesus; chegando no “espaço dos mortos”, encontram-se com ‘o vivente’” (cfr. João 20,1-18)
Madalena faz a experiência de ressurreição e corre a anunciar à comunidade de discípulos. Pedro e João correm juntos, mas João é mais jovem e chega antes; o texto bíblico relata: “João chegou primeiro ao sepulcro, viu e creu” (Cfr. João 20,3-8); segundo a exegese Pedro é o símbolo da Igreja em sua organização e estrutura, João é o amor, o carisma da Igreja, o coração que motiva. Usemos este contexto para continuar nossa reflexão, considerando que a “vida religiosa” é chamada a ser o discípulo João, que corre na frente e indica o caminho para a Igreja.
A Vida religiosa é essencialmente profética, por isso, é chamada a ter a sensibilidade de Madalena que tem a coragem de buscar o Amado no lugar onde depositam os mortos e a “leveza de João” que é capaz de correr; esta é a característica essencial da Vida Religiosa. Se olharmos a história, percebemos que a vida religiosa esteve sempre em constante movimento através de diversos “modelos”: padres dos desertos, mosteiros, ordens mendicantes, missionários, obras de caridade, escolas, hospitais etc.; sempre itinerante, a vida religiosa também tem se expressado sem a ajuda de estruturas, inserindo-se em meios pobres, em regiões de fronteiras.
Apesar de seu dinamismo e serviço, algo está acontecendo e tem deixado a vida religiosa invisível, aparentemente obsoleta. “Por quê?” esta pergunta tem nos intrigados e angustiado; essa crise, às vezes, nos movimenta, porém, muitas vezes, nos paralisa.
Nos movimenta a buscar uma fidelidade mais dinâmica, capaz de atualizar a sua linguagem através de novas frentes de missão, fazendo com que nos adaptemos aos meios de comunicação, que busquemos novos modelos de fraternidade, com mais autenticidade e menos formalidades. Mas, em meio a este movimento necessário, existe o medo! Medo de perder a raiz da própria identidade de consagrada; talvez o receio de perder o sentido profundo da renúncia dos votos e entrar em um processo de secularização hedonista. Deixar certos modelos estruturados exige uma maturidade espiritual fundada na identificação profunda com Jesus.
A coragem da mudança emerge da autorrealização pessoal, isto é, ser feliz dentro da escolha feita, sem perder-se na busca de compensações secundárias de apegos afetivos, de aburguesamento, e na busca da segurança institucional oferecida por nossas famílias religiosas. A atitude de um religioso voltado para si mesmo, perdido em um narcisismo é, sem dúvida, o caminho mais seguro para a frustração pessoal e o enfraquecimento da comunidade, enquanto testemunho vocacional. A consagração deve ser uma força fecunda, não cortes inúteis que impedem nossa força vital.
Muitas vezes intuímos a necessidade de mudança, porém as tensões comunitárias podem frear estes movimentos de transformação, pelo medo do novo, pelo comodismo do “sempre foi assim”, por identificar a fidelidade carismática com formas exteriores, esquecendo que o carisma é um organismo vivo, em constante dinamismo.
Dizem que existem dois caminhos para o aprendizado, um “pelo amor e outro pela dor”; chego à conclusão de que, na maioria das vezes, o método de aprendizado é aquele da dor; portanto, quero acreditar que esta crise numérica, possa ser a dor necessária para a auto avaliação pessoal e institucional, para ressignificar nossas escolhas pessoais e comunitárias.
A proposta vocacional deve emergir da realização pessoal na própria opção de vida, nunca deve nascer da necessidade de “mãos de obra” para manter nossas obras, ou pessoas para administrar nossas pesadas estruturas; não é um recrutamento, mas uma busca fraterna de novos irmãos que partilhem da mesma vocação.
[Continua]
Sobre a autora (Irmã Fátima Simone Cremer):
Do Instituto das Irmãs da Providência, fundador São Luís Scrosoppi/ Itália. Fiz a profissão dos votos no ano de 1995, aos 22 anos. Desde os primeiros anos contribuí na pastoral da juventude e vocacional. Trabalhei por 4 anos em uma obra Social em Açailândia/ MA. Estudei três anos na Pontifícia Universidade Salesiana/ Roma no departamento de Pastoral da Juventude e Catequese. Trabalhei 12 anos na equipe de formação inicial, sendo 8 anos como Mestra de Noviciado. Atualmente exerço o serviço de Superiora Provincial, desde o ano de 2018.
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Fotos: Pixabay e Unsplash